segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Duzentos Gramas

Os dias de Mariana naquela cidadezinha ao sudoeste de lugar nenhum seguiam normalmente sem novidades:

Pela manhã estudava, o que julgara muito importante, pois devido à falta de opções que aquela cidade oferecia, decidira que, quando crescesse, lecionaria na escola de apenas uma sala do lado da igreja.

Ao chegar, almoçava e ajudava sua mãe nos afazeres domésticos, que não eram muitos, já que moravam num casebre de 50 metros quadrados.

Ao entardecer, era hora de ir ao mercadinho, também ao lado da igreja, para comprar os ingredientes para o jantar. Dona Tereza, a matriarca, acreditava que comprando as coisas todos os dias teria produtos mais frescos, mesmo sabendo que o tal mercadinho só repunha os produtos das prateleiras uma vez por semana.

Após o jantar lavava a louça, banhava seus três irmãos menores e os punha para dormir. Depois sentava-se no degrau da porta da sala e lia os livros emprestados por sua professora, enquanto sua mãe fazia companhia ao seu pai, recém-chegado do trabalho, frente à televisão. Depois de ler alguns capítulos do livro, retirava-se para dormir e no dia seguinte tudo recomeçava ciclicamente.

Certa tarde, ao chegar ao mercadinho para suas compras diárias, avistara um rosto não familiar atrás balcão:

- Duzentos gramas de muçarela, por favor – disse ela.
- Nossa, que raridade!
- Comprar muçarela?
- Não! Falar duzentos gramas. Todo mundo fala duzentas.
Ela assentiu sorrindo e ele sorriu em retribuição.
- Você não é daqui, não é mesmo?
- Não, cheguei faz dois dias. Vi uma placa de emprego e resolvi trabalhar aqui.
- Tá passando uns tempos?
- É. Ainda não sabemos quanto tempo. Meu pai foi transferido pra cá, mas não sei até quando.
- Entendo. Bem, nos vemos por aí. Até mais.
- Você não vai levar a muçarela?
- Ah é verdade. Obrigado.
- Prazer, Rodrigo.
- Prazer, Mariana.

Mariana virou-se sem olhar para trás, pagou suas compras e foi embora encantada com distinto moço. Chegando em casa, enquanto sua mãe tirava as coisas da sacola ela contava sobre o novo morador da região:

- Ele é bonito?
- É lindo mãe. Tem um sorriso igual de artista. Os olhos azuis que nem uma piscina – disse enquanto sua mãe olhava o pacote de queijo.
- Quem pediu muçarela?
- Fui eu, vou fazer uma... – pensou. Uma torta.
O resto do dia passou como de costume. No dia seguinte, enquanto almoçavam:
- Já fez sua lista de hoje mãe?
- Mas agente ainda está almoçando Mariana. Já tá pensando na janta?
- É pra adiantar o serviço, né mãe!
- Sei. Se eu não te conhecesse eu te comprava Mariana. Você está é querendo ir lá ver o tal do moço do olho de piscina.

Ela sorriu e não respondeu. Mariana não tinha muitas amigas e essas tardes em que passavam juntas criou entre elas uma cumplicidade mais do que de mãe e filha. Elas terminaram de almoçar e enquanto Mariana lavava a louça sua mãe fazia a lista diária.

- Mãe, coloca duzentos gramas de muçarela na lista.
- Aquela muçarela está na geladeira ainda.
- Mas é que...eu.. – gaguejou.
- Já entendi. Então compra só cem gramas.
- Tem que ser duzentos. Ele adora o jeito que eu falo duzentos – e saiu sorrindo.

Chegando ao mercadinho:

- Boa tarde! – disse ela.
- Tarde! – sorriu ele.
- Me dê du-zen-tos gramas de muçarela – disse pausadamente.
- É pra já!
- Seu pai trabalha nessa obra de escavação de petróleo?
- Trabalha.
- Eles estão atrapalhando meu pai.
- Por que?
- Meu pai é pescador, essa escavação está espantando os peixes da região.
- Desculpe. Não vai ser por muito tempo. Daqui a pouco meu pai tem que ir para outro lugar.
- Se seu pai trabalha nessa empresa. Por que você trabalha num mercadinho?
- Não quero passar o resto da minha vida acompanhando meu pai.
- O que você quer fazer da vida?
- Ainda não sei. E você?
- Eu vou ser professora. Não tem muita coisa pra fazer por aqui.
- Então por que você não vai embora?
- Pra onde?
- Sei lá, pega uma mochila e cai no mundo.
- Não é tão fácil assim.
- Basta você querer.

A frase dele a assustou:

- Tenho que ir. Tchau.
- Tchau.

E os dias foram se passando. Ele do lado de dentro do balcão e ela do lado de fora. Enquanto ele fatiava a peça de muçarela eles conversavam.
Ele nascido em São Paulo, viaja o Brasil com sua família acompanhado seu pai que trabalhava com escavação de petróleo. Hoje aos dezesseis anos, sonhava em viver num lugar fixo.

Ela, aos quinze, filha de pescador, nunca saíra da cidade onde nascera e provavelmente nem sairia. A única coisa que sabia sobre o mundo é o que via na televisão.

Certa tarde, ao chegar ao mercadinho não viu rodrigo atrás do balcão. Em seu lugar estava Seu Manoel, o dono do mercadinho. Um português de meia idade de bigodes compridos e brancos:
- Pois não senhorita?
- Cadê o Rodrigo, Seu Manoel?
- Me deixaste na mão o garoto. Foste embora. O que vai querer?

A pergunta ecoou em sua cabeça. Ela hesitou um momento e então respondeu:

- Me dê duzentos gramas de queijo prato!